Desenhos de estudo aplicados à Ergonomia
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1 - Recapitulando

Olá amigx Ergonomista!

No último artigo desta série, falamos sobre os níveis de evidência dos artigos científicos. Vimos também o que são desenhos de estudo e como eles se relacionam com o nível de evidência proporcionado por uma pesquisa. Neste, abordaremos os diferentes tipos de desenhos de estudo e como eles se aplicam às pesquisas em Ergonomia.

Primeirxamente, vamos deixar claro que nosso objetivo aqui é apresentar as características mais relevantes dos principais tipos de artigos que você Ergonomista irá encontrar nas revistas científicas. Não pretendemos abordar todos os tipos de desenho de estudo e nem esmiuçar todas as suas características (para isso precisaríamos escrever um livro!). Caso você queira se aprofundar neste assunto, recomendamos o livro “Delineando a pesquisa clínica”, de Stephen B. Hulley e colaboradores. 

É importante também relembrar a pirâmide abaixo, que classifica os desenhos de estudo de acordo com o nível de evidência que proporcionam.



Para entendermos melhor as ideias que serão apresentadas, vamos usar como exemplo a relação entre altura do monitor do computador e dor cervical. Como saber se existe relação de causa e efeito entre estes dois fatores? Por exemplo, como saber se um monitor posicionado abaixo da altura adequada, causa dor cervical?

2 - Tipos de desenhos de estudo 

2.1 Opinião de experts

Na base da pirâmide situa-se as opiniões de experts. Podemos encontrá-las nas revistas científicas em forma editoriais ou cartas ao editor. São publicações que trazem, respectivamente, a opinião de especialistas sobre determinados assuntos ou comentários de pesquisadores sobre trabalhos publicados pela revista. Embora contribuam para o debate científico e possam se basear em referências, não deixam de ser opiniões. Por isso, estas publicações podem até ajudar você Ergonomista a entender melhor sobre algum assunto, mas não costumam ser utilizadas como referência. 

Pensando em nosso exemplo, seria como perguntar a umx Ergonomista renomadx se elx considera que a altura incorreta do monitor pode gerar o aparecimento de dor cervical. Elx te dará uma opinião baseada em seus conhecimentos e em sua experiência. Embora a opinião possa até estar correta, ela continuará sendo uma opinião, não uma evidência científica, ok?

2.2 Estudos com animais / Estudos in vitro

São dois tipos de estudo que você raramente irá encontrar em revistas de Ergonomia. São muito aplicados nas etapas iniciais de uma investigação científica, como no desenvolvimento de novos remédios, por exemplo. Por serem realizados com animais ou mesmo fora de organismos vivos (em culturas de células ou órgãos isolados, no caso dos estudos in vitro), seus resultados não se repetem necessariamente quando aplicados em humanos. 

2.3 Relato de caso / Séries de casos

Já esses dois tipos de estudos são muito frequentemente encontrados em revistas de Ergonomia. Como o próprio nome indica, um relato de caso é uma publicação que irá descrever um determinado caso isolado. Já as séries de casos abordam vários casos semelhantes. São muito utilizados para descrever casos raros e/ou para relatar os resultados de pequenas intervenções não controladas, ou seja, que não têm um grupo controle (falaremos mais sobre isso adiante). 

No nosso exemplo, poderíamos imaginar um esudo descrevendo os resultados observados após a modificação da altura dos monitores de computador do setor de telemarketing de uma empresa. É possível que após a modificação, seja observada uma diminuição nos níveis de dor cervical relatados pelos funcionários. Mas será que a redução da dor foi causada diretamente pela modificação feita? Com esse tipo de desenho de estudo, não é possível afirmar categoricamente que sim. Por que não? Embora vários fatores metodológicos possam ser citados aqui, o principal deles é a ausência de um grupo controle, ou seja, de um grupo de funcionários que não tenha passado pelas modificações realizadas, para ser comparado ao grupo que passou. Afinal, só o fato de receber atenção da equipe de SST pode levar os funcionários a ter uma sensação de melhora (o famoso efeito placebo). 

Sendo assim, embora os relatos e séries de casos ajudem a sugerir possíveis efeitos de intervenções, não oferecem o mesmo nível de outros desenhos de estudo (como veremos adiante). Porém, na ausência de estudos que ofereçam maior nível de evidência, relatos e séries de casos podem ser utilizados para embasar recomendações em Ergonomia, desde que você tenha em mente as limitações que apresentam.

2.4 Estudos transversais

Os estudos transversais são aqueles realizados pontualmente, ou seja, sem acompanhamento ao longo do tempo. São como uma fotografia da situação naquele momento. No nosso exemplo, poderia ser um estudo avaliando a altura dos monitores de computador e o nível de dor apresentado pelos funcionários de um setor de telemarketing. Neste caso, o/a pesquisadorx avalia uma única vez os fatores mencionados e pode tentar verificar se existe correlação (ou associação) entre eles. Mas muito cuidado: correlação não significa relação de causa e efeito

Vamos supor que nesta pesquisa hipotética os resultados indicaram existir correlação entre altura do monitor e dor cervical: quanto mais elevado estava o monitor, maior era o nível de dor relatado pelos funcionários. Então eu posso concluir que a altura do monitor causou a dor cervical? NÃO! Esse é um erro frequentemente cometido por leitores (e até mesmo por autores) de estudos transversais ao tirarem suas conclusões. Embora pareça lógico que a altura do monitor tenha gerado a dor dos funcionários, não podemos desconsiderar a hipótese contrária: a de que os funcionários que têm dor cervical (por qualquer outra causa) ajustem seus monitores em posição mais elevada para tentar aliviar a dor. 

É o mesmo que querer saber quem veio primeiro: o ovo ou a galinha. Não dá pra saber, né? Para conseguir identificar quem veio primeiro (a dor cervical ou a altura elevada do monitor) seria preciso acompanhar os funcionários ao longo do tempo, avaliar se eles tinham dor antes de começarem a trabalhar no setor e, idealmente, compará-los a funcionários que não foram expostos a monitores elevados durante o trabalho. 

Então, sempre que ler um estudo transversal, lembre-se: mesmo que os resultados indiquem uma correlação entre dois fatores, não podemos afirmar que um seja causa do outro! É possível que exista uma relação de causa efeito? Sim, é possível. Mas esse tipo de estudo não tem o poder de afirmar isso! Na sua prática como Ergonomista, na ausência de outros estudos que forneçam maiores níveis de evidência, um estudo transversal pode ser usado para justificar uma recomendação. Mas mantenha sempre em mente suas limitações, ok?

2.5 Estudos de caso-controle / Estudos de coorte

Lembra que dissemos agora há pouco que os estudos transversais são como fotografias, pois nos mostram o que está acontecendo em um determinado instante? Agora vamos falar de dois desenhos de estudo que são como filmes, ou seja, que nos permitem acompanhar ao longo do tempo os sujeitos ou fatos sob investigação. Mas, como acontece nos filmes, a gente só pode assistir. Não temos nenhum controle sobre os fatos que acontecem no enredo.

Um estudo caso-controle funciona como aqueles filmes que começam mostrando o final e depois retomam a história lá do início, pra gente entender o que aconteceu com os personagens. Vamos continuar com nosso exemplo hipotético de investigação da relação entre dor cervical e altura do monitor de computador.  Em um estudo de caso-controle, o/a pesquisadorx começaria selecionando os casos: funcionários que apresentam dor cervical. Em seguida, selecionaria os controles: funcionários sem dor cervical. Na sequência, investigaria o passado dos funcionários, para tentar identificar possíveis diferenças entre os grupos que justificariam o aparecimento da dor cervical entre os casos e sua ausência entre os controles. Isto poderia ser feito avaliando os registros médicos dos funcionários desde a admissão na empresa, o tempo que os funcionários atuam no setor e a altura do monitor de computador utilizado por cada um deles ao longo desse tempo, etc. Se após esta análise o/a pesquisadorx identificar que os funcionários não apresentavam dor cervical ao serem admitidos na empresa e que, ao longo do tempo, uma quantidade significativa daqueles que trabalharam com monitores em alturas inadequadas desenvolveu dor, bingo! Agora já sabemos quem veio primeiro e podemos pensar em uma relação de causa e efeito.

Um fator complicador para este tipo de estudo é que muitas vezes as informações necessárias ao estudo não estão adequadamente registradas e/ou precisam se basear em relatos posteriores, diminuindo muito sua confiabilidade (quem nunca passou por isso em uma empresa, não é Ergonomista?). Por isso, embora já consigam indicar causalidade, os estudos de caso-controle oferecem um nível de evidência menor se comparados aos estudos de coorte, como será visto agora.

Já nos estudos de coorte, assistimos ao filme do começo e acompanhamos os personagens até o desfecho da história. No nosso exemplo, o/a pesquisadorx recrutaria funcionários do setor estudado que não apresentam dor cervical no momento de início do estudo e os acompanharia ao longo do tempo, fazendo avaliações periódicas e registrando variáveis como surgimento de dor cervical, altura do monitor durante o trabalho, diagnóstico de doenças degenerativas da coluna cervical, ocorrência de acidentes, etc. Se ao final do estudo for verificado que, entre os funcionários que desenvolveram dor cervical durante o seguimento, a altura do monitor foi um dos fatores que os diferenciou do grupo que não desenvolveu dor, bingo de novo! 

Neste caso, assim como nos estudos de caso-controle, também sabemos o que veio antes, e podemos pensar em causalidade. Porém, com a vantagem de que os dados estão sendo coletados diretamente pelos pesquisadores ao longo do tempo, aumentando sua confiabilidade e, consequentemente, o nível de evidência que este tipo de estudo proporciona.

Porém, em ambos os casos, a equipe de pesquisa é mera expectadora dos fatos. Ou seja, não controla nada do que acontece! Isso acaba fazendo com que outros fatores interfiram nos resultados observados. É possível, por exemplo, que a empresa esteja passando por um período particularmente difícil, com demissão de funcionários, gerando um clima de tensão e aumento da percepção de dor. Como diferenciar o quanto a dor relaciona-se à altura do monitor ou a outros fatores? 

Existem métodos estatísticos que ajudam a diferenciar o quanto cada fator influencia o desfecho estudado, buscando minimizar esse tipo de confusão. Assim, é muito importante que fatores intervenientes sejam levados em consideração durante esses estudos. Porém, no final das contas, como a equipe de pesquisa não controla os acontecimentos, os estudos de coorte, assim como os de caso-controle, também acabam perdendo em termos de nível de evidência de causalidade para os ensaios clínicos controlados.



2.6 Ensaios clínicos randomizados e controlados

Neste tipo de estudo, podemos dizer que o/a pesquisador(a) sai da posição de espectador(a) para se tornar diretor(a) do filme. Isto significa que agora elx terá um grande nível de controle sobre os acontecimentos, podendo manipulá-los de modo a identificar a existência ou não de uma relação de causalidade. Como isso é feito?

Voltando ao nosso exemplo, podemos imaginar (de modo simplificado) um ensaio clínico para investigar se a altura incorreta do monitor pode levar à dor cervical. A equipe de pesquisa começa selecionando trabalhadores que não têm dor cervical prévia. Em seguida, escolhe aleatoriamente alguns deles para trabalhar com alturas de monitor corretas (chamados de grupo controle) e outros para trabalhar com monitores intencionalmente posicionados de forma errada (chamados de grupo intervenção). A esta alocação aleatória dos participantes chamamos de randomização (vem daí o termo “randomizado”, presente no nome deste desenho de estudo).

Todo o processo a seguir é meticulosamente controlado: quantas horas por dia cada voluntário fica em frente ao monitor, quantas pausas são feitas durante o trabalho, qual a altura do monitor em cada grupo, etc. Após um determinado período de tempo, todos os voluntários são avaliados quanto ao surgimento ou não de dor cervical. Ao final do estudo, caso o número de pessoas que desenvolveram dor cervical no grupo intervenção seja estatisticamente maior do que o do grupo controle, voilà, teremos uma relação de causa e efeito (falaremos mais sobre significância estatística em um post futuro desta série).



Parece perfeito, certo? E seria, se não fosse por um detalhe: será que é ético expor estes trabalhadores a uma situação potencialmente danosa à saúde só para testar uma teoria? Pensando de outra forma, pergunte-se: será que eu aceitaria participar deste estudo? Bom, eu não aceitaria… Isto significa que nem tudo pode ser testado através de um ensaio clínico randomizado e controlado. Há limites éticos para expor pessoas (e também animais) a situações de potenciais danos físicos e psicológicos. Para evitar abusos cometidos por pesquisas científicas existem os Comitês de Ética. Nenhum estudo consegue ser publicado por uma revista séria sem contar com a aprovação prévia de um Comitê de Ética. Ainda bem, né?

Então, considerando nosso exemplo hipotético, dificilmente conseguiríamos encontrar um ensaio clínico para embasar uma recomendação ergonômica sobre altura de monitor para prevenção de dor cervical. Seria necessário utilizar estudos com menor força em termos de nível de evidência, mas que sejam éticos e possam ser executados. Fica então a mensagem: pelo menos em ciência, os fins não justificam os meios. 

2.7 Revisões sistemáticas

Chegamos ao topo da pirâmide: as revisões sistemáticas. Em primeiro lugar, é importantíssimo que fique claro que não estamos falando das revisões narrativas. Nestas últimas, os autores discorrem sobre um determinado assunto, utilizando as referências que julgam pertinentes. Ou seja, os autores escolhem quais referências serão incluídas na revisão. Já na revisão sistemática há uma metodologia pré-definida para realização das busca pelos artigos que farão parte da revisão e todos os que se encaixarem nos critérios pré-definidos, sem exceção, são incluídos na  análise. 

Ok, mas por que as revisões sistemáticas são consideradas o crème de la crème das evidências científicas? Porque elas oferecem conclusões a partir da análise não de um, mas de vários estudos, realizados em várias partes do mundo, por vários pesquisadores diferentes e com vários voluntários! Pensa comigo: um estudo pode conter erros, certo?  Sejam eles intencionais, não intencionais ou simplesmente fruto do acaso (lembre-se: a estatística não é um oráculo que revela verdades absolutas, mas uma ferramenta que oferece respostas com elevada probabilidade de estarem corretas, mas não infalíveis). Porém, é bastante improvável que vários estudos diferentes apresentem erros tão abundantes  a ponto de impedirem uma conclusão razoável sobre determinado assunto. É isso que as revisões sistemáticas fazem: agrupam, de modo imparcial, todos os estudos que atendem aos critérios estabelecidos para chegar a uma única conclusão. É o que dizem: a união faz a força!

Um passo adicional que pode ser dado em uma revisão científica se chama metanálise. Neste caso, além de todo processo já descrito, os autores combinam os resultados numéricos dos estudos independentes e realizam uma análise estatística (chamada de metanálise). O resultado da metanálise permite demonstrar matematicamente a existência ou não de evidências suficientes para embasar a conclusão apontada pela revisão sistemática. Agora sim, chegamos mesmo ao topo!

Revisões sistemáticas, com ou sem metanálises, podem ser realizadas com vários tipos de desenhos de estudos, embora sejam mais encontradas (e valorizadas) as feitas a partir de ensaios clínicos randomizados e controlados. 

Que tal colocar em prática o que vimos no post de hoje? Escolha um artigo relevante para o seu trabalho como Ergonomista e identifique se o desenho de estudo que foi empregado “casa” com a conclusão. Se tiver dúvida, coloca aqui nos comentários que a gente te ajuda com o maior prazer!

No próximo post desta série falaremos sobre os testes estatísticos vistos com mais frequência nos artigos científicos. Até lá!

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