Qual a relação da Ergonomia com os acidentes de trabalho?
Alguns Ergonomistas podem até não saber, mas muitos dos nossos colegas que atuam na área trabalham fazendo parte de equipes que desenvolvem projetos de prevenção de acidentes e adoecimentos, bem como analisando os eventos adversos que já ocorreram.
Existe uma relação estreita entre Ergonomia e acidentes, visto que os últimos são influenciados por aspectos ligados à situação de trabalho (como a atividade, o maquinário, e o meio técnico ou material onde acontece a atividade) e também pelas relações de trabalho, sendo essa determinada pela sua organização do trabalho, responsabilidade da corporação.
A Ergonomia acredita que a grande maioria dos acidentes ocorrem por falhas no processo de trabalho, na interação entre os elementos de um sistema.
Os acidentes e adoecimentos estão dentre as principais demandas que um Ergonomista tem dentro de uma empresa:
- Fiscalização: seja por denúncia ou por uma ação do Ministério do Trabalho (ou Secretaria Especial), os auditores fiscais do trabalho visitam as corporações para analisar se as normas do trabalho são seguidas, dentre elas as ligadas à Ergonomia, solicitando comprovações de que um Programa Ergonômico é mantido, como pede as Normas Regulamentadoras 01 e 17 (NR01 e NR17).
- Processo judicial: pode ocorrer, por exemplo, por uma reclamatória trabalhista, de um funcionário afirmar que sofreu uma doença do trabalho ou um acidente típico. Nesse caso, é de bom tom que a empresa apresente ao juiz documentos que comprovem a ocorrência de um bom Programa de Ergonomia na empresa. Esses documentos podem ser:
(1) O LPRE - Levantamento Preliminar dos Riscos Ergonômicos e/ou a AET - Análise Ergonômica do Trabalho, que mostrarão os levantamentos dos riscos ergonômicos que o trabalhador pode estar exposto;
(2) Plano de Ação Ergonômico, que mostra as ações que deverão ser feitas, as já realizadas e os prazos para que os riscos sejam amenizados/eliminados em cada atividade ou ambiente.
(3) Os Registros de Treinamentos Ergonômicos, que comprovam que os trabalhadores foram informados que estão expostos a determinados riscos ergonômicos e como fazer para amenizá-los ou cessá-los;
(4) Os Relatórios de Melhorias Ergonômicas, que comprovam a implantação das melhorias, a redução/eliminação do risco e a aprovação por parte dos trabalhadores.
- Afastamentos: é comum o Ergonomista ser chamado na empresa para ajudar no programa de redução dos afastamentos ou de redução da demanda ambulatorial. Os afastamentos normalmente têm relação com problemas ligados à atividade, ou seja, têm relação direta com a área da Ergonomia.
- Acidentes de trabalho: não é incomum as corporações contratarem Ergonomistas para reduzirem os acidentes que acontecem na empresa, como estamos tentando mostrar nessa série de posts.
Análise dos fatores de riscos latentes e dos acidente
A principal forma que um Ergonomista pode atuar frente aos acidentes de trabalho, é analisando os fatores de risco latentes que podem levar ao acidente, ou aproveitando a experiência negativa gerada por um acidente já ocorrido, analisando os fatores que levaram a ocorrência do evento adverso.
Não é nosso objetivo aqui indicar “essa ou aquela” metodologia de análise de acidente, até porque o Ergonomista está muito bem servido da sempre boa metodologia da AET para tal.
A análise do acidente deve considerar sempre que existe mais de uma causa, umas mais e outras menos impactantes para aquele caso, mas todas devem ser consideradas.
Outra dica é contar com a participação de todos os envolvidos: produção, qualidade, manutenção, segurança, recursos humanos, ergonomia e etc.
Outra dica legal é realizar a análise previamente, antes de que aconteça os acidentes! Nesse caso, o Ergonomista tem muitas pistas que pode seguir: faltas, queixas de dor ou desconforto, um corte pequeno, um “esbarrão” na máquina que quase gerou um problema maior e etc. Esses são sinais que a atividade dá ao Ergonomista, que podem passar despercebidos, mas que podem resultar em um acidente de trabalho caso sejam ignorados.
Em seu livro “Um novo olhar na prevenção de acidentes do trabalho: O Fator Ergonomia” (2019), os Drs Hudson e Dennis Couto afirmam que “a maior parte das empresas possui uma falha de 40% em seus programas de segurança”. Segundo eles, essa porcentagem passa despercebida pelos gestores e corresponde aos fatores que são observados pelo olhar da Ergonomia.
Eles analisaram 983 acidentes de trabalho, sob a ótica da Ergonomia, e chegaram à importante conclusão de que 41% deles (405 acidentes) ocorreram diretamente pelas “más condições de ergonomia”.
Segundo os autores do livro, “nas condições detectadas, não se consegue a prevenção simplesmente dizendo ao trabalhador para tomar cuidado; é necessário melhorar as condições de trabalho”.
As razões mais frequentes achadas por eles foram acidentes por equipamentos, máquinas ou ferramentas inadequadas (21%); layout inadequados (18%); padrão operacional que não contempla a ergonomia (17%); posição forçada do corpo (16%); piso inadequado (15%); sobrecarga ligada à tarefa ou à atividade (10%); meio inadequado de movimentação de materiais (10%); escadas, rampas e acessos inadequados (9%); esforços intensos (8%); máquinas e equipamentos inadequados para a tarefa (7%); visão Comprometida (7%%) e outros totalizando 11%.
“Foi erro humano!”
Em relação à análise de acidentes, as abordagens tradicionais (ainda muito comum nas corporações), mostram uma visão reducionista e tendenciosa de que esses eventos adversos possuem uma ou poucas causas.
Segundo essa visão, os acidentes acontecem decorrentes de falhas dos operadores (“erro humano”, “ato inseguro”, “comportamento fora do padrão” e outros rótulos dados aos que eles chamam de “motivos principais”). Somente depois, em segundo ou terceiro plano, os acidentes são associados ao descumprimento de normas e padrões de segurança ou a falhas técnicas e materiais. Ou seja, nessa visão tradicional, a “culpa” principal é do trabalhador que não cumpriu o que foi instruído, associada a algum fator “imprevisível”.
Não que não exista, mas sempre é mais fácil e mais cômodo “jogar” a culpa de um acidente no operador, ou seja, atribuir ao homem (elo mais fraco do sistema de produção) a culpa pelo acidente. Essa atitude facilita a vida dos envolvidos, por não necessitar de uma investigação aprofundada do evento, analisando aquele acontecimento de forma isolada das outras fases do processo (fases anteriores e posteriores).
Esse modelo tradicional é ineficiente e insuficiente para explicar o processo causal multifatorial dos acidentes, o que limita as ações de vigilância e prevenção de acidentes, por não conseguir identificar os fatores latentes que levaram ao evento.
O fato é que quanto mais barreiras e quanto melhor elas forem planejadas, menor o risco de acidentes!
O erro humano não é frequente. Ele acontece quando o processo de trabalho já está com problemas (o que faz o trabalho realizar ajustes para dar conta do objetivo - trabalho real), somado à dificuldade de resolver os problemas encontrados no trabalho e somado, ainda, ao fato das barreiras não serem suficientes para evitar os acidentes.
Causas de acidentes ligadas à Ergonomia
São inúmeras as causas de acidentes ligados à Ergonomia e falaremos dos principais a seguir, dando exemplos reais:
1) Trabalhador apressa-se para produzir mais e ganhar mais bonificação, o que aumenta o risco de acidentes e reduz a qualidade do produto.
2) Trabalhador que corre mais no trabalho, para sair mais cedo, como no caso de garis de algumas cidades que fazem o percurso correndo para terminar o trabalho mais cedo e poderem ir embora mais cedo.
3) Mudança no processo de trabalho habitual, sem aviso prévio dos envolvidos, com no caso de um acidente em que o trabalhador perdeu o dedo, pois estava tentando sentir a textura da peça colocando o dedo enquanto ela girava; nessa situação, a peça veio com um buraco que nunca havia vindo, o que fez com que o dedo agarrasse e fosse arrancado.
4) Mudança das regras de trabalho e sem aviso prévio, como ocorreu com o acidente acontecido em um viaduto na cidade do Rio de Janeiro, no qual o motorista foi avisado pela empresa que não poderia mais parar em determinado lugar no alto de um viaduto, mas essa informação não foi repassada para a população, que se revoltou e acabou cansando a queda do ônibus de cima do viaduto.
5) Condições de trabalho ruins e precarização do trabalho, que justifica o acidente em que a enfermeira trocou a medicação administrada em crianças pelo fato de ganhar mal, ter que trabalhar em 2 hospitais na escala 12/36h, por cansaço, ambiente mal iluminado, identificação da medicação precária e falta de barreiras que identificasse o erro de separação da farmácia.
6) Gestão da produção autoritária: na falta de um membro da equipe, o outro trabalhador é designado para cobrir os postos faltantes, sem direito à recusa, sob pena de aplicação da punição;
7) Equipamentos, máquinas ou ferramentas inadequadas: a inadequação dos recursos causa a adaptação realizada pelo trabalhador, como no caso do desgaste do corte das facas que perdem “o fio”, exigindo mais força na operação e correndo o risco de derraparem no corpo do animal, aumentando as chances de acidentes.
8) Ferramentas inexistentes que tiveram que ser improvisadas: como a utilização de um pedaço de lâmina cortante para raspar a sobra de cola de uma peça de madeira (uma ferramentas produzidas sem projeto adequado e sem considerações técnicas), que faz com que o trabalhador tenha que segura a própria lâmina manualmente, aumentando a chance de cortes manuais.
9) Layout inadequado: o layout inadequado gera a proximidade do corpo do trabalhador com fatores de risco, especialmente com partes mecânicas das máquinas, correndo o risco do trabalhador ter sua roupa puxada pelas engrenagens da máquina.
10) Padrão operacional que não contempla a ergonomia: procedimentos operacionais que estimula o trabalhador a adotar comportamentos ergonomicamente incorretos, como no caso da burla que alguns trabalhadores fazem no sensor de parada de uma máquina (colocando uma moeda para tapar o sensor), fazendo com que a máquina não pare quando precisa, para aumentar a produção.
11) Posição forçada do corpo: o posicionamento forçado do corpo pela falta de uma ferramenta que permita que ele parafuse no teto, levando-o a elevar o braço demasiadamente.
12) Piso inadequado, com presença de escadas, rampas, desníveis e acessos inadequados: o piso inadequado por um desnível, associado à dificuldade das pessoas em enxergarem a irregularidade do piso e à atividade que requer atenção em outro foco gerando quedas. Essa questão é agravada em pisos com escadas, acessos e rampas.
13) Meio inadequado de movimentação de materiais: acidentes por movimentação manual de cargas de forma inadequada, as quais deveriam ser movimentadas por algum dispositivo auxiliar de transporte de carga.
14) Plataformas Inadequadas ou Inexistentes: a falta de plataformas adequadas para elevar a altura do produto que se vai alcançar, faz com que o trabalhador execute sua atividade posicionando o corpo de forma inadequada, o que pode favorecer a ocorrência de acidentes.
15) Acidentes Decorrentes de Esforços Intensos: esforços intensos para encher o tambor de apara, levantando uma carga alta por centenas de vezes, gerando transtornos musculoesqueléticos.
16) Acidentes por visão comprometida: a dificuldade de enxergar as instruções escritas na embalagem de uma matéria prima, causada pela má iluminação e a layouts ruins, causa acidente ao não se escolher o comando correto da máquina.
Muito frequentemente ocorre um círculo vicioso muito conhecido pelos Ergonomistas: a taxa de acidentes elevada pode estar associada ao baixo efetivo de trabalhadores que devem dar conta de uma determinada produção, o que os faz aumentar a velocidade de produção, reduzindo o uso dos já precários meios técnicos e materiais. Soma-se a isso a fadiga gerada pelo trabalho intenso, levando às dores e ao absenteísmo e à rotatividade sem controle e “inesperada”. Este cenário de faltas e demissões, faz com que a empresa admita novos trabalhadores, inexperientes, que têm maior chance de se acidentarem. Todo esse cenário reduz a “margem de manobra” do trabalhador, reduzindo a possibilidade dele se ajustar, aumentando ainda mais a chance de acidentes.
Quais passos o Ergonomista deve seguir para melhorar sua atuação na equipe de prevenção de acidentes?
Faça parte da Equipe de Prevenção de Acidentes
Inicialmente, comece fazendo parte da equipe de prevenção de acidentes, convidando outros atores. Participe da CIPA e divulgue o trabalho do Ergonomista na prevenção de acidentes: explique como a Ergonomia pode ajudar nessa análise.
Entenda a atividade e analise os fatores latentes
Dentro do contexto da Ergonomia da Atividade, deve-se compreender o trabalho, em situação real. Entender quais são as entradas (inputs), processamentos (processment) e saídas (outputs) necessários para a realização da atividade e identificar os riscos latentes gerados pela interação dos componentes do sistema.
As alterações nas condições, estratégias e modos operatórios escolhidos para realizar a atividade, exigem ajustes (regulações) que podem afetar a segurança no trabalho.
Uma dica valiosa: aproveite para adicionar itens relacionados aos acidentes e adoecimento como demanda a ser estudada pelo LPRE ou AET na corporação.
Analise os acidentes que já aconteceram
Procure analisar alguns acidentes que já aconteceram, para tentar entender as causas que levaram ao evento, à lesão ou ao adoecimento. Essas informações serão importantes para te direcionar nas ações que vamos sugerir em seguida, como o que abordar nos treinamentos, quais demandas iniciais podem ser adicionadas para seu LPRE ou AET e etc.
Após o acidente ter acontecido, o Ergonomista deve analisá-lo, à luz dos conceitos da Ergonomia, observando os itens citados acima e alguns outros que julgar necessário.
Realize bons Treinamentos Ergonômicos
O treinamento ergonômico, para alguns, é apenas pro-forma, ou seja, para cumprir uma obrigação. Para o Ergonomista experto o treinamento serve para melhorar o entendimento do trabalhador em relação ao seu trabalho (conhecendo os riscos e como reduzi-los ou evitá-los), divulgar conceitos importantes que ajudam o trabalhador a não se lesionar, trabalhar de forma mais confortável e produzindo mais. Adicione no treinamento questões relacionadas aos acidentes, mostrando o motivo de ter ocorrido e a forma correta de agir.
Crie estratégias para melhorar a sua comunicação com o trabalhador
O importante conceito ergonômico de “atividades prescrita e real” indica que há uma considerável diferença entre o trabalho que deve ser feito (tarefa ou trabalho prescrito) e o que de fato acontece (atividade ou trabalho real). Esse conceito explica ainda que o trabalhador se esforça e “dá seu jeito” para conseguir aproximar o real do prescrito, para que haja um bom funcionamento do sistema de produção. É o esforço do trabalhador (e sua saúde física e mental) que preenche as lacunas deixadas pelas diferenças do trabalho que é prescrito no papel e aquele que acontece de verdade, com erros e improvisos.
Nesse contexto do trabalho real e prescrito, o trabalhador sabe, na maioria das vezes, o que fazer para resolver seus problemas e ele o faz com improvisos, pra nós, Ergonomistas, “estratégias”, “modos operatórios” e “regulações”.
Nós melhorar nossa comunicação com o trabalhador, para que possamos perceber esses “improvisos” (“arrangement”) e analisar se eles geram risco de acidentes e, caso gerem, procurar resolvê-los.
Participe das construções de segurança das máquinas, equipamentos, ferramentas e das atividades
A participação do Ergonomista é primordial em projetos de compra e construção de máquinas, equipamentos, ferramentas e atividades. Aplicar os conceitos da Ergonomia sobre esses itens é garantia de que haverá importante redução de queixas, dores, afastamentos e acidentes por incongruência entre os elementos do sistema de trabalho.
Participe da CIPA
A CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes) é um grupo de pessoas preocupadas em melhorar as condições de trabalho, para prevenir acidentes. O bom Ergonomista deve participar dessa equipe, criando estratégias para fortalecê-la, dando voz ao trabalhador e procurando resolver as sugestões de melhorias apresentadas por ela.
Faça seu dever de casa
A essa altura do post, fica claro para todo Ergonomista que as questões de adoecimento do trabalho, sejam elas mentais ou físicas, têm relação direta com a Ergonomia. A essa altura fica claro também que os adoecimentos físicos e mentais também tem relação direta com o trabalho do Ergonomista (e não só as doenças osteomusculares - OM). As empresas contratam esse profissional para dar conta, minimamente, das doenças OM, então faça o seu dever de casa e, juntamente com os outros objetivos, proponha medidas para reduzir os acidentes decorrentes de afastamentos por doenças OM.
Utilize a Ergonomia para reduzir os custos com os acidentes
Já está entranhado nas veias do bom Ergonomistas a procura por um retorno do investimento feito pela gestão da corporação em que ele trabalha e isso não deve ser diferente no caso da atuação na prevenção dos acidentes. Nós falamos dos principais custos que a empresa tem com um acidente e levantar tais dados é importante para que o gestor entenda o real impacto dos acidentes também nos cofres da empresa.
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